— N?o vamos conseguir correr mais do que eles.
O sussurro de Lucia se dissolveu no vento frio da mata, mas Eva ouviu cada sílaba como uma lamina arranhando sua paciência.
— Isso n?o importa. Você n?o vai colocar fogo na floresta! O incêndio vai chegar na cidade.
— N?o existe mais cidade!
As palavras saíram antes que a jovem manipuladora pudesse contê-las. A pequena esfera incandescente em sua m?o brilhou ainda mais, pulsando como um cora??o acelerado, alimentada por algo além da magia — raiva, talvez. Ou desespero.
"Ela me lembra a Ana...", pensou Eva, mas n?o recuou.
Plantou os pés no ch?o, os ombros tensos como se sustentassem o peso do mundo. N?o havia hesita??o em seu olhar. Ela n?o deixaria isso acontecer.
N?o importava o qu?o fácil fosse a solu??o. N?o importava que seus corpos já estivessem no limite. Que suas pernas já amea?assem ceder, que o frio na barriga causado pelo medo já estivesse virando algo permanente.
O fogo n?o era uma op??o.
Elas estavam fugindo há meio-dia. Meio-dia de passadas pesadas e respira??es ofegantes. Meio-dia sendo ca?adas como animais, sem saber por quantos. As flechas haviam cessado, mas os passos persistiam. às vezes, um som de risada zombeteira cortava o silêncio entre as árvores, como se a própria floresta estivesse rindo delas.
Sabiam que estavam sendo levadas para longe. Tentavam seguir os uivos distantes de Garm, guiando-se por ele, como náufragos buscando um farol. Mas seus perseguidores eram inteligentes. A cada desvio, a cada nova tentativa de reencontro, as afastavam ainda mais.
O cansa?o rastejava por suas veias, sugando sua for?a, tornando a fome um peso que n?o podiam ignorar. Quase n?o falavam. Quando o faziam, eram discuss?es curtas sobre o que fazer. O silêncio que ficava no meio era insuportável.
— Me escuta aqui — Eva voltou a murmurar, a voz baixa, mas afiada como uma lamina. — Você e seus amigos já fizeram merda demais. Eu n?o vou deixar você acabar com a vida dos possíveis sobreviventes. Vamos só continuar correndo.
Lucia franziu o cenho, a testa suada, os lábios entreabertos pelo esfor?o. Sua express?o deixou claro que queria retrucar, mas Eva n?o deu chance. Antes que as palavras saíssem, puxou-a com um tranco. A esfera de fogo se dissipou no ar no mesmo instante.
Novas flechas passaram onde estavam um segundo antes. Voltaram a correr.
Lucia suspirou fundo antes de abrir a boca de novo.
— Eu n?o fiz por querer… — disse em palavras entrecortadas. — Achei que era o certo ficar com eles. Eles eram… fortes. — Ela piscou algumas vezes, tentando organizar seus pensamentos enquanto puxava o ar. — Eu entendo você, mas se n?o fizermos nada, vamos morrer…
Eva continuou correndo, ponderando.
— Você n?o pode falar com eles?
— Se fosse alguém normal, talvez… mas esse cara n?o vai me ouvir.
— Esse cara? — questionou Eva, lan?ando um olhar rápido para ela.
— Matheus — Lucia cuspiu o nome como se o próprio som fosse amargo. — é um grande filho da puta. Tenho certeza de que vai nos matar mesmo que a gente se renda.
— Droga… — Eva resmungou entre dentes, apertando o arco com mais for?a, como se pudesse esganar a situa??o junto com a madeira gasta. — O que você consegue fazer? Em que tipo de manifesta??o se especializa?
Lucia piscou, confusa. O tipo de confus?o que n?o era só falta de conhecimento, mas a hesita??o de alguém que nunca parou para pensar na própria resposta.
— Como assim?
Eva bufou. Alto. O som saiu seco e impaciente, como quem sente uma enxaqueca se formando.
— Como assim “como assim”, garota? Você n?o foca em alguma merda de mana?
Lucia desviou o olhar, como se a pergunta fosse ofensiva.
— Focar? Eu só… penso em qualquer coisa e fa?o aparecer. N?o tem uma área exata.
Silêncio.
Eva piscou lentamente, absorvendo aquilo.
Depois, revirou os olhos e soltou um riso seco, cínico, daquele tipo que n?o tinha humor de verdade, só descren?a pura.
Unauthorized duplication: this narrative has been taken without consent. Report sightings.
— Só tem gente estranha ao meu redor…
O olhar dela se demorou em Lucia por um instante a mais do que deveria, como se estivesse tentando decidir se a garota era uma prodígio incompreendida ou só um desastre ambulante esperando para acontecer.
A jovem arqueira n?o era uma manipuladora, mas n?o era completamente ignorante sobre o assunto. Ouvira falar de como era difícil se concentrar, de como a mente precisava se alinhar a um conceito, de como o processo inteiro era t?o exigente que beirava o insano. E era por isso que a maioria escolhia um único campo. Um foco. Um caminho.
Porque para dobrar a realidade, era preciso entendê-la. Disssecá-la.
Fazer qualquer coisa surgir, como se a lógica fosse um conceito opcional? Como se a natureza da mana n?o fosse algo que esmagasse os fracos?
Isso exigia um nível de concentra??o que ia além do normal. Muitos chamariam de loucura.
Ent?o, sem perder mais tempo pensando nos assuntos, apontou para o topo das árvores. Os galhos grossos se erguiam como bra?os estendidos, promissores e trai?oeiros ao mesmo tempo.
— Se você só “pensa e faz aparecer”… consegue fazer uma rampa para nos mandar lá pra cima?
Lucia seguiu seu olhar.
O topo era denso, mas as árvores eram robustas. Poderiam se mover entre elas com dificuldade, mas ainda assim, pareceriam sombras na folhagem, inalcan?áveis.
A jovem manipuladora hesitou.
— N?o vamos ficar muito lentas?
— Tem ideia melhor?
A mana crepitou ao redor de seus dedos, e o olhar de Lucia endureceu.
— Tenho sim…
— H?? E por que tá enrolando pra falar? Mas que porra...
— A-acabei de ter a ideia, n?o t? enrolando!
Bufou, meio irritada, meio nervosa. Era estranho falar assim com alguém da sua idade. Com Arthur… bem, Arthur era Arthur. N?o se deram bem no início. Foi uma evolu??o gradual: de companheiros de equipe para algo próximo de amizade. Mas ele era silencioso, metódico, alguém que ouvia antes de falar.
Eva n?o. Eva parecia um espelho distorcido dela mesma.
A ruiva tinha uma presen?a forte. Falava com firmeza, decidia, e n?o aceitava besteiras. A verdade é que Lucia queria socar sua cara. Mas, ao mesmo tempo… sentia aquela irritante, sutil, quase dolorosa vontade de se aproximar. N?o como com Ana. Ana era outra coisa, uma montanha inalcan?ável. Mas Eva? Eva parecia alguém que podia ser uma amiga. Uma de verdade.
Balan?ou a cabe?a. Distra??es n?o ajudariam.
— Eles n?o querem se aproximar, n?o s?o ca?adores treinados em lutas corporais. S?o assassinos furtivos, especializados em ataques rápidos e leitura de terreno. é a única guilda que trabalha assim de Barueri. Pela quantidade de flechas, talvez sejam pouco mais de meia dúzia?
— Oito pessoas. Talvez nove. Onde quer chegar?
Lucia apontou para o arco da ruiva.
— Quantos disparos você consegue fazer em uns 8 segundos?
A ruiva arqueou uma sobrancelha.
— Tá pensando em ir direto neles?
— Eu n?o consigo fazer nada fugindo. Se n?o vamos destruir tudo, a única forma de acabar com isso é enfrentar.
— Ah, merda… — Eva fechou os olhos, e quando os abriu novamente, estavam diferentes. Determinados. — Que seja. Vamos lá.
— Firme o corpo!
— O quê?
— Firme o corpo, droga!
Sem mais explica??es, ainda correndo, Lucia se jogou para o lado. Seus dedos tocaram o solo lamacento, e, num instante, dois pilares de terra endurecida irromperam do ch?o, catapultando Eva para o céu.
A jovem arqueira arregalou os olhos, surpresa. O lan?amento foi instável — o vento arrancou um palavr?o de seus lábios — mas seu corpo n?o demorou a se ajustar no ar.
— Isso é loucura! — gritou, mas suas m?os já haviam puxado uma flecha.
O mundo se abriu diante dela.
Viu-os. Homens e mulheres encapuzados, ocultos entre as sombras da mata. Moviam-se em silêncio, corpos disciplinados para ca?ar. Todos arqueiros. Alguns tinham facas amarradas às cinturas, mas n?o pareciam tentados a usá-las. O ataque furtivo ainda era prioridade.
N?o esperavam ser vistos.
A primeira flecha disparou antes mesmo que um deles percebesse que estavam sob ataque.
Foi certeira. O homem caiu sem som, apenas um baque surdo contra a terra. A segunda flecha foi engatilhada antes que o primeiro corpo atingisse o ch?o. Outro disparo. Outro corpo. Os sussurros entre os ca?adores se transformaram em exclama??es alarmadas.
E ent?o, Eva parou de ver qualquer coisa.
Porque estava caindo.
"Espero que ela tenha um plano para a hora de descer também."
O pensamento veio com uma risada curta. Se fosse morrer, ao menos n?o teria sido como um animal encurralado.
Mas Lucia tinha um plano.
Na altura da copa das árvores, Eva viu as folhas se movendo, torcendo-se, tensionando-se como se puxadas por fios invisíveis. Um emaranhado de galhos se fechava abaixo dela, formando uma rede viva.
E, no meio disso, a jovem de cabelos negros.
A garota estava com as m?os firmemente pressionadas contra dois troncos, os olhos semicerrados em concentra??o, a respira??o irregular de quem estava for?ando seu limite.
O impacto veio com for?a. Doeu. Mas Eva n?o morreu.
Isso era o que importava.
Quando parou de se balan?ar na rede improvisada, olhou para Lucia.
— Isso foi… insano.
— Mas deu certo, né?
Eva bufou, mas havia um tra?o de respeito no olhar.
— Da próxima vez, me avisa antes de me jogar no céu, idiota.
— Tá… firme o corpo!
Quer apoiar o projeto e garantir uma cópia física exclusiva de A Eternidade de Ana? Acesse nosso Apoia.se! Com uma contribui??o a partir de R$ 5,00, você n?o só ajuda a tornar este sonho realidade, como também faz parte da jornada de um autor apaixonado e determinado. ??
Venha fazer parte dessa história! ??
Apoia-se:
Discord oficial da obra:
Galeria e outros links:
Ficaremos sem imagens por um tempo, mas logo volto a postar!
Estou meio sem tempo e n?o est?o saindo resultados bons...