Sylara
A queda foi abrupta e interminável. N?o uma queda no sentido literal, mas algo que parecia mais profundo, como se estivesse sendo puxada para dentro da própria floresta — ou para além dela.
Quando os pés finalmente tocaram o ch?o, meu corpo cedeu, os joelhos batendo contra uma terra estranhamente macia, mas fria ao toque. O ar ao meu redor estava carregado, pulsante, quase vivo, como se o lugar soubesse mais sobre mim do que eu mesma.
Ergui os olhos, tentando ajustar minha vis?o à escurid?o quebrada por uma luz tímida e difusa. O que vi foi algo que parecia ter saído de um sonho — ou de um pesadelo.
à minha frente, uma figura emergiu das sombras. Alta, esguia e impossível de ignorar, sua presen?a preenchia o espa?o ao redor como se ele fosse o dono n?o apenas do lugar, mas também do próprio momento. Seus olhos, dourados como fogo líquido, brilhavam em contraste com sua pele quase translúcida.
— Finalmente — disse ele, a voz carregada de autoridade, mas com uma suavidade que quase escondia uma amea?a. — Estávamos esperando.
Estávamos? Fiquei de pé, ofegante, tentando entender o que exatamente acabara de acontecer e quem era aquele ser que me olhava como se soubesse cada segredo que eu tentava esconder.
Esse foi o meu primeiro encontro com o que chamariam, mais tarde, de destino.
O som veio primeiro. Baixo, gutural, como o rosnado distante de uma fera que avista sua presa. Minhas m?os instintivamente se fecharam em punhos, mas a verdade era que eu n?o sabia se poderia lutar contra o que estava prestes a aparecer.
A criatura emergiu das sombras como parte delas. Alta, com uma estrutura deformada que oscilava entre algo humano e um animal que eu n?o conseguia identificar. Seus olhos — dois círculos brilhantes e intensos — fitavam-me sem piscar, e eu senti meu peito apertar sob o peso daquele olhar.
— Você n?o deveria estar aqui.
As palavras soaram na minha mente, mas os lábios daquela coisa nunca se moveram. Um arrepio percorreu minha espinha enquanto tentava firmar os pés.
— N?o pedi para estar aqui — repliquei, minha voz fraca demais para soar t?o destemida quanto queria.
A criatura deu um passo à frente. A luz incerta refletiu na pele negra ou escamosa — eu n?o sabia dizer ao certo. Suas garras, que se arrastavam pelo ch?o com um som metálico, eram longas e afiadas, mas ainda assim havia algo de humanoide em sua forma, como um rosto que um dia poderia ter pertencido a alguém de carne e osso.
— Apenas os que carregam a sombra dentro de si podem cruzar. Quem n?o for digno será devorado por ela.
N?o houve amea?a em sua voz, apenas uma certeza absoluta que tornou cada palavra ainda mais terrível.
— Eu sou digna — disse, sabendo que apenas as palavras n?o bastariam.
— Mostre.
Antes que pudesse reagir, as sombras ao meu redor se agitaram como serpentes. Formaram um arco diante de mim, moldado por escurid?o viva, pulsante, e dentro dele havia apenas um vazio — uma passagem que parecia sugar até mesmo a luz.
— Atravesse.
— E o que acontece se eu n?o fizer isso? — perguntei, mas já sabia a resposta.
— Você n?o sobreviverá para perguntar novamente.
Dei um passo em dire??o ao arco. O vazio me chamava e me repelia ao mesmo tempo. Meu cora??o batia t?o alto que eu podia jurar que ele ia explodir. Mas continuei caminhando. Se isso era um teste, eu tinha que passar. Havia muito mais em jogo do que apenas a minha vida.
Quando meu corpo atravessou a barreira, senti como se o próprio ar fosse arrancado dos meus pulm?es. Um calor, depois frio. A press?o era insuportável, mas n?o desisti. Forcei-me a seguir, parecia que meu corpo estava sendo arrancado de mim, meus pulm?es faltando ar, era como se eu estivesse afogando sem ter água em volta. Tento focar a frente, mas tudo parecia apenas um borr?o, minhas lágrimas n?o desciam pelo meu rosto, elas evaporaram no ar. Tudo queimava e ao mesmo tempo era uma queima??o de frio, ent?o quando penso que n?o iria passar, tudo ao meu redor se dissipou.
Emergi em uma sala imensa e sombria, onde luzes brilhantes iluminavam um único trono ao centro. O ar era pesado, como se estivesse carregado de energia antiga, e cada passo que dava parecia afundar no ch?o.
O ser sentado no trono ergueu a cabe?a, e embora seus olhos estivessem cobertos por uma venda negra, a sensa??o era de que ele via tudo. Ele era mais do que uma figura: era uma for?a que dominava o espa?o ao seu redor.
— Bem-vinda — disse, sua voz um trov?o calmo. — Você cruzou a sombra e ainda respira. Isso já é algo.
Come?o a tossir e parecia que estava tossindo meu próprio pulm?o, me ajoelho no ch?o e tento recuperar meu ar ou o que sobrou dele. Surge na minha frente uma ta?a com água ou que acho que era água.
— Beba, irá te fazer bem. — Olho para ele e por alguma raz?o n?o sentir medo, pego a ta?a com meus dedos tremendo e tomo um gole, a dor no meu pulm?o desapareceu e minha garganta n?o parecia mais seca.
— O que era isso? — Consigo dizer, apesar de toda molécula do meu corpo estava doendo.
— Vamos chamar de antidoto. Ou apenas água. Quem sabe. — Levanto do ch?o e finalmente consigo olhar para ele, o rosto dele era coberto pela venda escura, me lembrava o outro feérico que encontrei mais cedo. — Há está se referindo ao Elarion? Digamos que somos da mesma linhagem, por isso as vendas.
Arregalo os olhos, ele consegue ouvir minha mente?
— Ouvir? N?o, mas consigo ler o que você está pensando e vejo que tem muito o que pensar. Me diga, qual é seu nome? —
— Sylara Elyndra Tharviel. — Tento soar firme.
— E quantos anos você tem?
— Tenho 15 anos.
— 15? Ainda uma crian?a, ainda tem muito o que aprender, deve ser por isso que n?o se sabe nada sobre seus ancestrais. Como você passou pela sombra, irei lhe contar a história dos seus ancestrais, sua história.
— Há 2000 anos, quando o mundo de Nyvathar estava à beira da destrui??o, os humanos entraram em guerra contra os Feéricos. Os Feéricos tinham poderes naturais e conex?es profundas com a magia da floresta, enquanto os humanos eram mais numerosos e se voltaram para armas e destrui??o. A guerra devastou o equilíbrio da terra e amea?ou consumir tudo em caos.
Foi ent?o que Aelirys, a Deusa da Restaura??o, desceu ao mundo. Para salvar Nyvathar, ela sacrificou parte de sua essência divina para criar um elo que uniria os dois povos: a linhagem real de Tharviel. Aqueles que carregassem o sangue real n?o seriam apenas governantes entre humanos, mas também um vínculo com o poder antigo da floresta e das sombras.
Quando Aelirys desceu a este mundo, ela n?o veio apenas para salvá-lo. Ela veio para moldar um novo equilíbrio. Seu sangue, Sylara, carrega fragmentos da essência dela — e é por isso que a floresta a aceitou, mesmo que n?o entenda completamente o motivo.
Find this and other great novels on the author's preferred platform. Support original creators!
Seu destino, assim como o dela, n?o será simples. Aqueles que carregam poder sempre enfrentar?o escolhas terríveis, pois o equilíbrio é uma promessa fácil de ser quebrada. E Kaelorien... ele também é um eco do sacrifício de Aelirys, mais entrela?ado ao seu legado do que você está pronta para saber. — Pisco algumas vezes absorvendo tudo o que ele acabou de me dizer.
— O que o Kaelorien tem a haver com isso?
— Ah querida humana, tudo... Ele é seu passado, seu presente e será seu futuro. Ele pode ser sua chave e ao mesmo tempo o cadeado. Sugiro que n?o mantenha seu cora??o t?o aberto assim.
Fiquei em silêncio. A sensa??o de que algo enorme e incompreensível acabava de ser colocado em minhas m?os me sufocava. Meu sangue, minha vida, minha própria existência eram mais do que apenas um acidente.
— N?o quero isso — murmurei, as palavras saindo antes que pudesse pensar.
— N?o querer n?o muda nada — respondeu ele, sem um tra?o de compaix?o. Sua voz era firme, implacável. — Carregar esse sangue n?o foi sua escolha, mas o que você fará com ele, sim.
— Parece fácil para você dizer isso. — Minhas palavras carregavam uma raiva crescente. — Estar no trono é apenas um fardo para mim. Ser “um vínculo com os Feéricos” n?o vai me devolver o que perdi.
O Guardi?o inclinou a cabe?a levemente, e embora o véu cobrisse seus olhos, senti sua avalia??o cortante.
— Essa é a primeira coisa verdadeira que você disse desde que entrou aqui. Você carrega mais do que deseja, mas carrega menos do que é capaz de suportar.
Avancei um passo em sua dire??o, meus punhos cerrados.
— Se sabe tanto assim, por que n?o faz isso por mim? Por que me colocar nesse jogo?
— Porque você é o jogo, Sylara. — Ele ergueu a m?o em um gesto calmo, mas autoritário, e um espelho escuro surgiu no ar entre nós, sua superfície ondulando como água em uma tempestade. — Olhe para si mesma. Olhe para o que está dentro de você.
Hesitei. Parte de mim n?o queria se aproximar. Mas o peso de suas palavras, como correntes invisíveis, me empurrou adiante. Quando parei diante do espelho, algo estranho aconteceu. N?o vi meu reflexo, mas fragmentos — memórias, rostos que n?o reconheci, chamas e sombras.
E ent?o, lá estava ele. Kaelorien, parado em meio à escurid?o, seu olhar roxo penetrante cravado no meu.
— Você n?o pode fugir disso, Sylara — disse o Guardi?o. — Nem dele.
Meu cora??o disparou, e eu me afastei do espelho como se tivesse sido queimada.
— O que isso significa? — perguntei, a voz mais trêmula do que gostaria.
— Significa que o destino já escolheu. A única coisa que resta decidir... é o que você está disposta a sacrificar.
— Estou cansada dessas palavras com meio significados. Por que n?o apenas fala tudo de uma vez? Em vez de enigmas.
— Esse n?o é meu trabalho, meu trabalho é apenas mostrar o passado para você entender seu presente e saber o que fazer no futuro. Ah... mais uma coisa, n?o acredite em ninguém, nem mesmo no seu cora??o. Ele pode te enganar, mas seus ouvidos n?o, se lembre disso.
Antes que eu pudesse responder a sala come?a a mudar e as sombras toma conta de tudo e quando me vejo estava novamente na sala com o Kaelorien e o Elarion.
Quando a sala come?ou a mudar, um turbilh?o de sombras e luz me envolveu, e eu me vi de volta onde tudo havia come?ado — na sala com Kaelorien e Elarion. A sensa??o de ter sido arrancada de um lugar onde n?o sabia mais se estava em pé ou caída ainda persistia em meu corpo. Eu estava atordoada, o ar parecia mais denso do que antes, mas nenhum dos dois parecia perceber a mudan?a ou o que eu acabara de enfrentar.
Kaelorien estava em pé, observando-me com aqueles olhos penetrantes de um roxo profundo, ainda envolto em seu mistério. Elarion, ao seu lado, mantinha a postura serena, mas com um leve franzir de testa, como se tentasse decifrar algo que ele mesmo n?o compreendia.
Nenhum deles falou por um momento, e o silêncio entre nós era denso e pesado, como uma tempestade prestes a estourar.
Eu estava tentando processar tudo o que havia acontecido no teste, a sensa??o de ter cruzado a sombra e o que o Guardi?o havia dito sobre meu destino. Mas n?o conseguia lembrar o suficiente para dar sentido às palavras dele, nem mesmo o que eu realmente vi — apenas flashes, fragmentos que se dissolviam antes que eu pudesse entender.
Finalmente, Kaelorien quebrou o silêncio. Ele se aproximou lentamente, seus passos silenciosos, quase como se n?o quisesse me assustar.
— O que aconteceu? — Ele disse, a voz suave, mas com um tom de preocupa??o que n?o pude ignorar. — Você... parece diferente.
Eu olhei para ele, tentando entender o que ele via em mim. N?o sentia nada de diferente, mas a sensa??o de estar em um lugar que n?o era mais o mesmo era inconfundível.
Elarion, de sua parte, parecia mais atento ao meu estado do que Kaelorien. Ele me estudou por alguns segundos antes de falar, a voz fria e calculista, como sempre.
— O que quer que tenha ocorrido no teste... isso n?o é algo que você deva carregar sozinha. — Ele deu um passo à frente. — O que vimos aqui... pode ter sido um reflexo de algo mais, algo que nem mesmo os de nossa linhagem compreendem totalmente.
Eu queria perguntar o que ele queria dizer com "nossa linhagem", mas a dor em minha cabe?a parecia crescer a cada palavra que eu tentava formar.
Kaelorien parecia querer me tocar, mas hesitou. Algo havia mudado no ar, como se ele soubesse que havia algo mais por trás daquela prova, algo que ainda n?o estávamos prontos para entender.
— Você ainda está com a mente confusa, n?o é? — perguntou ele, sua voz mais suave, quase como um sussurro. — Eu sinto isso. Vamos deixar o tempo passar antes de tentar entender o que aconteceu. O importante agora... é que você está viva.
Mas mesmo enquanto ele falava, havia uma sombra de dúvida em seus olhos, como se ele soubesse que minha sobrevivência naquele teste era apenas o come?o, e n?o o fim. Eu n?o estava certa do que estava sendo colocado em minhas m?os, mas sabia que o pior ainda estava por vir.
Elarion ent?o se dirigiu à porta da sala, e eu percebi que ele estava guardando suas palavras, apenas aguardando o momento certo para revelar algo que ele ainda n?o queria contar.
— O teste foi apenas um primeiro passo — disse ele, sua voz sem emo??o. — O que vem a seguir... nenhum de nós pode prever. Só sei que você precisará de todos os seus sentidos agu?ados.
E antes que eu pudesse questioná-lo mais, ele desapareceu na escurid?o da sala, deixando apenas Kaelorien e eu. O silêncio se estendeu entre nós, mas a tens?o era palpável.
— Eu... eu n?o sei o que fazer agora — murmurei, olhando para Kaelorien. — Eu sou apenas uma crian?a, Kaelorien. Eu n?o pedi por isso.
Ele me olhou, sua express?o suavizando um pouco, mas sua resposta foi firme:
— Talvez você n?o tenha pedido por isso, Sylara. Mas o que o futuro exige de você vai muito além do que qualquer escolha que você teria feito. Vamos ter que enfrentar isso, n?o importa o quanto custe.
Ainda assim, n?o consegui deixar de me perguntar se alguma coisa dentro de mim realmente estava pronta para o que estava por vir.
— Quero ficar sozinha, por favor. — Minha cabe?a parecia que ia explodir a qualquer momento. Sinto o olhar de Kaelorien em mim.
— Vou levá-la até um quarto, onde poderá descansar. — Olho para a m?o dele estendida e hesito antes de aceitar a m?o dele. Toco a m?o dele e sigo ele para fora da sala.
Seguimos por um corredor que as luzes ficavam flutuando no ar iluminando o caminho, caminhamos por alguns corredores e portas até chegarmos no final do corredor na frente de uma porta de freixo, ele abre a porta e nos dois entramos.
Quando entrei no quarto, a primeira coisa que notei foi a porta de freixo escuro, com detalhes esculpidos que pareciam formar galhos, quase como se a madeira tivesse vida própria. Dentro, o ar era gelado e silencioso, quase pesado, como se o tempo ali tivesse parado. A cama de dossel estava coberta por tecidos prateados e esverdeados, que refletiam pouca luz. N?o havia cor, nem calor, o ambiente parecia mais uma pris?o do que um refúgio.
O cheiro de madeira envelhecida e cera queimando era sutil, mas marcava o espa?o. Os móveis eram simples, o suficiente para criar um ar de austeridade. O ch?o rangia baixo a cada passo, e as cortinas pesadas bloqueavam a luz do luar. Era difícil encontrar qualquer sensa??o de acolhimento ali — tudo estava em silêncio, esperando, como se estivesse à sombra das minhas próprias incertezas.
— Vou deixá-la sozinha, mais tarde alguém virá trazer algo para você comer. — N?o respondo, apenas caminho até uma cama e me deito nela.
Escuto a porta fechar e olho por cima do ombro, estava sozinha, tinha se passado apenas 36 horas desde a morte dos meus pais e a minha usurpa??o, mas parecia que foi dias atrás, tudo foi como um banque de água fria em mim, muita informa??o para pouco tempo. Há três dias eu era apenas uma herdeira do trono com pais felizes e um reino que sabia que era meu, mas agora sou uma garota que n?o sabe nada com tudo a perder.
O frio da sala n?o me afeta mais, nem as paredes imponentes que me cercam. O silêncio é ensurdecedor, uma constante lembran?a de que estou sozinha. E nesse silêncio, o peso da perda parece maior do que eu imaginava ser capaz de suportar. A verdade é que nada mais parece ter sentido. N?o sei para onde ir ou o que fazer, só sei que a dor de perder tudo é esmagadora.
Levanto-me, andando em dire??o à janela. Lá fora, o céu cinzento parece refletir meu estado de espírito. O império que deveria ser meu se desfaz em minhas m?os, enquanto aqueles que usurparam meu lugar desfrutam do que deveria ser o meu direito. Mas eu n?o estou sozinha. Cada passo que eles tomaram para me derrotar me levou a uma escolha. E essa escolha é simples: vingan?a. O tempo para chorar já passou. Agora, minha única miss?o é recuperar o que é meu.
E é com essa promessa em mente que dou o primeiro passo para a minha verdadeira jornada. O sangue que foi derramado, e o que ainda será, me conduzirá. N?o importa a qu?o sombria seja essa estrada, eu n?o voltarei atrás. O que quer que me aguarde nesse caminho, n?o será mais uma quest?o de heran?a. Será uma quest?o de honra. E uma promessa silenciosa.