A porta deslizou para o lado com um sibilo suave, o som metálico ecoando fracamente pelo espa?o.
Ana entrou.
Seus passos eram lentos, ritmados, carregavam o peso de alguém que sabia que n?o precisava se apressar para dominar um ambiente.
Seis pessoas estavam presentes, todas com roupas leves, n?o por escolha, mas pelo contínuo desconforto da influência do navio. Um cheiro sutil de suor pairava no ar, evidenciando o cansa?o daquele tempo conturbado.
Niala, a rainha inseto, evitava as cadeiras de metal, sentada de forma quase ritualística sobre um pano estendido no ch?o, suas longas pernas dobradas em uma posi??o confortável apenas para ela. Ao seu lado, um único guarda de Myrmeceum permanecia ereto, imóvel como uma estátua, o olhar vazio, mas atento.
Lucas, o líder da divis?o bestial, estava quase completamente coberto por ataduras, seu corpo musculoso visivelmente fragilizado. Suas feridas ainda estavam frescas, e mesmo seu vigor natural parecia insuficiente para curá-las rapidamente.
O guerreiro havia acordado entre cadáveres, o cheiro de sangue seco impregnado em sua pele, surpreso por ainda estar respirando. Depois de ser resgatado, arrancaram mais de cinco flechas cravadas profundamente em seus músculos. Agora, ele olhava para Ana com uma express?o carrancuda — parte dor, parte orgulho ferido por precisar de ajuda para algo t?o “simples” quanto sobreviver.
Madame e Cassandra estavam em um canto, conversando em voz baixa, suas cabe?as inclinadas em um sussurro que morreu no instante em que Ana entrou.
O olhar da antiga líder de arena era afiado como uma lamina embainhada, pronta para cortar se provocada. Mas ela n?o disse nada.
Miguel, como sempre, estava sentado com uma postura impecável, as m?os cruzadas sobre a mesa, o corpo rígido, mas sereno. Sua máscara refletia a luz pálida da sala, escondendo qualquer emo??o, mas seus olhos — por trás das lentes opacas — estavam atentos, registrando cada detalhe com precis?o desumana.
Por fim, Alex estava deitado de barriga para baixo em uma das mesas longas, o rosto afundado nos bra?os cruzados, o olhar entediado e impaciente.
O pugilista soltou um suspiro alto quando a rainha entrou, mas n?o se moveu.
O silêncio era pesado.
O tipo de silêncio que vem antes de decis?es que mudam destinos.
Mancando levemente, Ana se aproximou da mesa central, seus passos ecoando no metal frio.
— Obrigado por virem. Sei que as coisas est?o corridas lá embaixo.
Sua voz era calma, mas carregava um tom que deixava claro: aquilo n?o era um pedido de desculpas. Era uma constata??o.
Puxou uma das cadeiras simples e se sentou com um movimento desleixado, jogando o corpo para trás e cruzando uma perna sobre a outra.
Olhou ao redor da sala, deixando o olhar repousar em cada rosto por um segundo a mais do que o necessário.
— Já conversei com alguns de vocês antes, mas quero que tudo fique bem claro.
Cassandra bufou suavemente, cruzando os bra?os com um movimento irritado.
— Claro. Clareza é algo que você sempre entrega, n?o é? — o tom era ácido, mas a voz baixa, como se testasse a paciência de Ana de forma sutil.
Ana n?o se deu ao trabalho de sorrir.
— Sempre. Só n?o sei se as pessoas gostam do que ouvem.
Um breve silêncio se instalou.
Alex soltou um suspiro dramático, finalmente levantando o rosto da mesa, o cabelo desgrenhado e o olhar cansado.
— Vamos lá, Ana. Fala de uma vez. Estou perdendo tempo precioso de descanso aqui.
— Certo, certo… — a rainha arqueou uma sobrancelha, uma sombra de um sorriso surgindo em seus lábios. Ela se recostou na cadeira, estalando os dedos antes de finalmente come?ar. — Antes de tudo, Miguel, pode nos dar o relatório?
O secretário fez um aceno sutil, levando a m?o até uma pequena folha de papel perfeitamente dobrada.
Antes de come?ar, limpou a garganta discretamente — um gesto desnecessário, mas que ele fazia por hábito, uma imita??o humana que mantinha por raz?es que talvez nem ele soubesse mais.
Sua voz ecoou, clara e controlada.
— Primeiramente, quanto aos sobreviventes… Levando em conta somente os habitantes originais de Insídia, temos cento e cinquenta e sete pessoas.
Ensure your favorite authors get the support they deserve. Read this novel on the original website.
O número parecia ressoar com um impacto maior do que o esperado.
— Desses, noventa e sete n?o est?o aptos para o combate e apenas quarenta e uma pessoas das restantes têm resistência suficiente para o embarque.
Fez uma pausa, n?o por dúvida, mas por respeito ao peso do que acabara de dizer. O silêncio que se seguiu era um tributo silencioso aos que n?o estavam mais ali.
Lucas, o líder da divis?o bestial, olhou para o ch?o, seus olhos pesados com o fardo da culpa e da sobrevivência.
— N?o sobraram soldados escamosos vivos — continuou Miguel, sua voz mais baixa, mas firme. — Já foram enviados dois mensageiros em dire??o a Carapicuíba para informar detalhes do ocorrido.
O silêncio foi quebrado por Niala, que cruzou os bra?os de forma despreocupada, sentada ainda no ch?o.
— Aqueles idiotas v?o se virar de alguma forma.
O comentário cortante dela n?o carregava rancor, apenas um pragmatismo cruel. Miguel respondeu com a mesma neutralidade de sempre, sua voz abafada pela máscara.
— Assim espero — ele ajustou o papel em suas m?os, mantendo o olhar fixo nas anota??es. — Quanto aos lobos cinzentos, eles se dispersaram após a ausência do conselheiro Garm. Creio que teremos alguns problemas de seguran?a nas florestas até que consigamos, ao menos, restabelecer o gado para uma nova tentativa de domestica??o.
Ana franziu o cenho, pensativa, e depois deu um leve aceno de cabe?a.
— N?o deve ser um problema se centrarmos os sobreviventes nas alas que ainda possuem muralhas. — disse com indiferen?a. — Os lobos n?o s?o fortes o suficiente para quebrá-las.
Miguel concordou com um breve gesto da cabe?a.
— Também acho. Mas ainda é algo para se ter em mente ao sair. Com isso, nos resta falar sobre os danos...
O silêncio na sala se intensificou.
— A área central n?o existe mais.
Cada palavra era um golpe invisível, mas doloroso.
— A ala leste é um campo carbonizado.
As imagens de corpos rachando em um preto intenso e estruturas desmoronadas surgiram na mente de todos.
— A oeste permanece relativamente intacta, mas é um campo de morte para onde quer que se olhe.
A rainha cerrou os punhos brevemente, mas logo relaxou, mantendo sua express?o inabalável.
— Pe?a para a divis?o das dríades cuidar dos corpos. N?o podemos arriscar uma doen?a agora.
O mascarado hesitou por um instante, algo raro para ele.
— Me adiantei nesse assunto... — come?ou, com um leve desconforto na voz. — Mas temos um pequeno problema. Letícia disse que vai permanecer em Insídia na sua ausência. Vai seguir com a reconstru??o dos laboratórios e centros médicos.
Ana arqueou uma sobrancelha, mas n?o interrompeu.
— Os demais sobreviventes do povo verde pretendem voltar a viver em meio às árvores. S?o poucos, mas aceitaram ajudar na limpeza dos cadáveres. Disseram que n?o será um mau adubo para a floresta destruída. No entanto, n?o querem mais viver em sociedade.
— Isso pode ser um problema… — murmurou Ana. — Bem, que seja. Talvez demore, mas deixarei anota??es detalhadas com os ciclos das planta??es antes de partir — ela suspirou, o olhar perdido por um breve instante. — Com t?o pouca gente, v?o se manter relativamente bem.
O olhar dela se tornou mais afiado, voltando ao modo de comandante.
— Quantos mascarados temos no navio neste momento?
— Em torno de vinte e três. — respondeu Miguel.
— Certo… é pouco, mas envie alguns deles para ficar no reino. Podem ajudar na reconstru??o. Os que faziam parte da elite de Alex devem ser mantidos por aqui.
Ent?o, sem saber exatamente por onde come?ar, fixou o olhar em Niala.
— Rainha inseto, tem certeza de que pretende nos acompanhar?
Niala sorriu, de forma estranhamente despreocupada, um contraste gritante com a frieza habitual que costumava exibir.
— Sim. Já fiz minha escolha. Verath vai ficar no controle do meu reino — disse, com um suspiro quase aliviado. — Ele é mais do que leal, mas sei que no fundo sempre quis isso.
Ana franziu o cenho, visivelmente cética.
— Você vai foder com toda a organiza??o que tem por lá…
— Já dediquei tempo demais para aquele lugar — disse a nulher, dando de ombros. — Estamos firmes o suficiente para nos manter agora que Barueri já n?o é uma amea?a. Quero explorar o mundo! — exclamando, tirou um pequeno frasco de bebida do cinto e deu um gole entusiasmado. — Hic!
Ana arqueou uma sobrancelha, o olhar carregado de julgamento silencioso.
"Alcoólatra desgra?ada", pensou, observando o corpo de Niala balan?ar desajeitadamente enquanto falava, exibindo uma personalidade muito diferente da líder calculista habitual.
— Que seja, ent?o — deixando a mulher de lado, se virou para Lucas. — Espero que ajude a manter os soldados bem treinados e as ruas seguras. Sei que n?o vai demorar para se recuperar.
O homem fez um gesto de respeito, tentando levantar o bra?o em sauda??o, mas grunhiu de dor e desistiu rapidamente, optando por um aceno discreto com a cabe?a.
O olhar de Ana passou rapidamente por Alex, que agora dormia profundamente, e por Miguel, logo ao seu lado.
Para eles, n?o disse nada, pois já sabia suas respostas.
Por fim, seus olhos se fixaram em Cassandra.
Sem uma palavra, puxou a máscara rachada que pendia em seu casaco.
A virou em suas m?os, analisando os detalhes que a acompanharam diariamente nos últimos dois anos.
Cada rachadura era uma cicatriz, uma memória do que ela havia enfrentado.
Ela respirou fundo e, com um gesto firme, estendeu a máscara para a rainha mercenária que a observava.
N?o havia discurso, nem explica??es.
Era mais do que um símbolo.
Era um fim e um come?o ao mesmo tempo, condensados em um único gesto.
Quer apoiar o projeto e garantir uma cópia física exclusiva de A Eternidade de Ana? Acesse nosso Apoia.se! Com uma contribui??o a partir de R$ 5,00, você n?o só ajuda a tornar este sonho realidade, como também faz parte da jornada de um autor apaixonado e determinado. ??
Venha fazer parte dessa história! ??
Apoia-se:
Discord oficial da obra:
Galeria e outros links: