O que vamos dizer ao futuro, pelas falhas que cometemos agora?
Uivo ficou em silêncio, observando os preparativos de partida das muitas comitivas organizadas para dar combate aos invasores. Aquela seria os preparativos para a partida da primeira comitiva. O dia principiava, e a luz dourada e fria dos primeiros raios de sol atingiram a floresta, e logo o atingiria. Longos fiapos brancos e vaporosos de neblina se levantavam com pregui?a do meio das árvores, borrando o céu azul.
á frente do conselho as comitivas foram se formando e partindo. Primeiro foi a triga de dem?nios de ZanaDun, que logo partiram para o norte. Logo após uma outra triga, agora de enormes lobos de Tune-Adun que sumiram t?o rapidamente quanto os dem?nios ao sinal do conselho.
Ent?o houve a espetacular e comovente partida do upupiara Tunaque, num formidável salto da cachoeira que despencava da pedra riscada em dire??o ao lago abaixo, onde sua triga o aguardava.
A guerra se tornara uma realidade, sentiram em suas almas. O voo de Tunaque, como seria conhecido aquele dia, n?o deixava dúvidas sobre isso.
Ent?o todos que haviam vindo para prestigiar a partida das três primeiras comitivas que partiam para a guerra rapidamente tomaram o caminho da clareira das sombras, onde estava montado o maior acampamento e de onde deveriam partir os dois danush.
Ante a importancia do evento, dan?as e rituais e bebidas para simbolizar a vitória na guerra aconteciam ali.
Após algum tempo, perdido no meio da festividade que ali acontecia, Adanu sentiu sua alma diminuir ao ouvir uma anaxaura exigir que os prisioneiros fossem trazidos para o ritual.
- Ent?o que tragam os prisioneiros para a Alcapa - ouviu a sugest?o eufórica de uma anaxaura.
Subitamente ficou em alerta, e procurou ver onde estava Uivo. Sabia o quanto isso o desgostava, e pelos modos dele viu que tinha raz?o.
Ele estava perto de uma alta e frondosa paineira, e parecia totalmente alerta.
- Eles s?o muito poucos - alertou outra anaxaura.
- A gente pode sair para capturar mais guerreiros. Afinal, nós vamos precisar de todas as for?as que pudermos juntar - voltou a falar a que dera a ideia.
- N?o podemos! - exclamou forte Uivo com a voz cansada, postando-se firme ao lado da árvore.
Repentinamente se fez silêncio, e os que estavam ali se voltaram e encararam Uivo, os semblantes confusos e muitos deles nitidamente irritados.
Allenda, com um sorriso como se já estivesse esperando por isso, se levantou, interessada em acompanhar o que quer que pudesse acontecer.
Mantendo uma atitude altiva Uivo olhou firme, diretamente para as anaxauras.
- N?o podemos o que?
A voz de Dene-dene saiu meio esgani?ada, pego de surpresa com uma oposi??o t?o espantosa. Dene-Dene mirava o jovem com um misto de estranheza e exaspera??o.
- N?o podemos sacrificar prisioneiros. O acordo,...
Um vozerio revoltado come?ou a se levantar do povo, e Dene-dene espalmou a m?o para eles, que se calaram de imediato.
- Espere ai! O que é que você disse?
- Disse que n?o podemos fazer sacrifícios. N?o devemos esquecer o acordo.
- Pois sim,... E por que n?o? - questionou Dene-Dene se levantando, dando a voz uma modula??o suave, daquelas que se usa com os de mente fraca. - Concordo que n?o devemos sair numa expedi??o de ca?a, mas quanto aos que já est?o presos,... O acordo da uni?o dos homens e seres, o chamamento aos danatuás n?o alcan?a os prisioneiros feitos antes do acordo. é justo que nos beneficiemos dos que s?o nossos por direito.
- Insisto que n?o podemos fazer isto – Uivo falou novamente, a voz fria.
- Por que insiste, nefelin? O que o está incomodando?
- Insisto porque os tempos est?o mudados; já n?o s?o os mesmos - falou com voz firme. – Insisto porque os terríveis guerreiros que foram ca?ados n?o lhes ceder?o mais suas for?as; porque os bravos e nobres guerreiros n?o os deixar?o mais fortes, valentes ou nobres quando comerem suas carnes - falou num tom mais alto para poder ser ouvido acima do burburinho que se instalara. – Se querem a for?a deles, que os deixem vivos para lutar.
- E como nosso pequeno nefelin enxergou isso, enquanto nós nada vimos? - perguntou Danara com vivo desprezo na voz, para mal estar dos outros nefelins que estavam presentes e que observavam Uivo com ódio.
- Apenas sei que n?o devemos mais agir como aqueles que estamos para enfrentar...
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Um urro irritado subiu dos seres. Apesar disso Uivo se manteve tranquilo, o que fez com que Dene-dene o observasse com os cenhos franzidos. Virou-se intrigado para o pajé, que pigarreou e avan?ou para junto do rapaz.
- Desculpem o Uivo - pediu Tenebe totalmente consternado afastando-o com o bra?o. - Ele está muito excitado com todos os preparativos.
Enquanto o empurrava para fora fez sinal para alguns guerreiros postados junto à orla da mata. Subitamente eles desapareceram. Quando retornaram logo depois puxavam duas duplas de guerreiros capturados, cada dupla unida por cipós amarrados nos pesco?os.
Adanu remexeu-se incomodado, os olhos fixos em Uivo que se mantinha perto da borda da floresta, junto à margem do rio, contido por Tenebe. O rapaz parecia amuado, encarando os que estavam reunidos com um olhar de acusa??o, principalmente os do conselho. O conselho de anci?os ignorava o nefelin, mas mirava Adanu, estranhando a atitude do mesmo, por se mostrar triste e desconsolado num momento como aquele.
Ent?o pegaram a primeira dupla, dois guerreiros fortes e de olhar duro, que foram rudemente postos de joelhos. Eles olharam para os lados, procurando reconhecer o terreno. N?o encontrando nada que lhes pudesse dar alguma esperan?a ficaram com os olhos longe, alheados a tudo o mais. Um pajé de olhos vidrados postou-se atrás deles. Com um único golpe seco e oco da borduna o primeiro caiu pesado para frente. O outro saiu de seu alheamento. Ele olhava fixamente para Adanu quando o golpe o atingiu. Sangue e cabelos voaram junto com peda?os de cérebro, mancha respingando no outro guerreiro caído.
Talvez aquela morte fosse a que mais tenha doido em Adanu, de tantas que já assistira. Ele sentiu uma dor no peito, inc?moda, ressentida. Seus olhos ainda vasculhavam os humanos estirados inertes no ch?o quando vários se adiantaram e os levantaram. Estardalha?o e alegria, risos e gritos de satisfa??o os levavam para os grandes jarros onde seriam escaldados, para facilitar a retirada da pele para, só ent?o, serem desmembrados, limpos e assados.
Adanu se encolheu dentro do mundo que se apequenara e se tornara cinza.
Ent?o um novo grupo puxou a outra dupla. O primeiro, ao ser empurrado para baixo, for?ou o outro, que soltou um urro violento.
Todos se arrepiaram.
N?o houve tempo.
O outro prisioneiro da dupla n?o era um homem, mas sim um dem?nio, um fantasma anhangá. Esse era muito forte e poderoso. Com um golpe cortou o companheiro com as garras e estra?alhou duas pessoas e o pajé que estavam mais próximos.
Houve grande alvoro?o.
Guerreiros às pressas se armaram enquanto nefelins e pessoas se apresentavam poderados para o combate.
O anhangá foi atingido duas vezes, e mais dois ele matou.
Um grande círculo se formou à sua volta, e um a um os guerreiros foram entrando para combatê-lo.
Um grande mapinguari caiu sob o ataque feroz do anhangá, e sua cabe?a foi despeda?ada com um poderoso golpe.
O cerco apertou-se.
Percebendo que n?o conseguiria sair com vida o anhangá saltou alto, saindo do círculo que o envolvia. Quando tocou o solo Tenebe foi lan?ado longe e Uivo foi agarrado e empurrado contra uma árvore. O anhangá preparava-se para destro?á-lo quando, com um urro formidável, um terrível puma cravou suas garras na lateral do bra?o do dem?nio e esgar?ou seus músculos. O anhangá gemeu de dor e soltou Uivo, que nem chegou a tocar o solo. Como se voasse, em pumacaya Uivo avan?ou as garras que atingiram a base da nuca do anhangá que se virara para dar combate a um lobisomem que o atacava. Tendo como apoio as garras Uivo montou sobre o pesco?o do anhangá com grande rapidez e cravou a outra garra, for?ando o mais que pode para baixo. O anhangá estremeceu violentamente, e muito devagar foi tombando para o solo, o pumacaya aferrado às suas costas. Num tranco violento Uivo abocanhou a parte traseira da cabe?a e, com as garras, cortou todo o pesco?o. Com um golpe seco puxou a cabe?a e a soltou ao lado do corpo.
O sangue negro escorria pelo corpo, encharcando o ch?o.
Vivas e ova??es explodiram no ar ao tempo em que o anhangá ia sumindo como névoa.
Uivo endireitou-se, os olhos injetados, os pelos longos batendo-se ao vento, o ódio em cada fibra do corpo. Num impulso forte saltou contra um tronco. Tomando impulso empurrou-se para longe e, de tronco em tronco, sumiu na floresta.
A cada salto mais aplausos e ova??es, o que os deixou ainda mais eufóricos e alucinados.
Adanu encontrou Tenebe, que tinha os olhos fixos na floresta. Quando seus olhares se cruzaram Adanu assentiu, movendo suavemente a cabe?a, concordando em que fosse atrás do jovem.
Tenebe, entendendo a inten??o de Adanu, moveu a cabe?a quase imperceptivelmente. Num movimento rápido e decidido se virou e partiu atrás do rapaz, a preocupa??o apertando o cora??o.
Allenda, que a tudo seguia, balan?ou a cabe?a em discordancia.
- Essa é uma fraqueza dele, que pode se voltar contra ele, de novo. Será que ele n?o percebe o quanto isso lhe faz mal, o quanto o obriga a se arriscar tanto? – reclamou para Adanu, os olhos na floresta onde Uivo desaparecera.
- Todo ente tem sua posi??o, mas somente poucos se decidem a defendê-las. Esses s?o os imprescindíveis, minha filha. Linhas que se criam, linhas que se cruzam. O futuro mostrará como foi tecido - sussurrou.
Allenda olhou curiosa para o pai, e viu que ele parecia extremamente cansado.
- O futuro mostrará – Allenda se despediu, se perdendo no meio da confus?o.
Por um tempo Adanu ficou parado, os pensamentos escorrendo pesados. Por fim, respirando fundo se apartou da balburdia dos festejos que logo recome?aram.
Por todo o tempo que durou a festa e as disputas de for?a e coragem, até que a carne e as bebidas fossem consumidas, Adanu manteve-se distante e pensativo. Parecia que tudo aquilo acontecera há tempo demais. Por fim aspirou lentamente o ar frio e cheio de penumbras que envolvia a pequena e sagrada clareira da floresta das sombras. Dali de onde estava podia ver com clareza, ao longe, a pedra riscada e a cascata das cobras.
Sorriu sem jeito.
- Muita coisa aconteceu!
Abriu os bra?os para a floresta, a velha, a antiga, de onde partiriam os grupos. Apesar de aparentar ser uma floresta amena e tranquila, todos que a conheciam a respeitavam, até mesmo a veneravam. Aquele era um dos lugares mais repleto de mistérios e magias, e por isso mesmo extremamente perigoso aos desavisados e de cora??es pesados. Quase encostado atrás da grossa parede de mato e galhos todos sabiam estar a trilha do tatu, uma via estreita que, vindo das profundezas da floresta, ali fazia uma curva suave que contornava a clareira até chegar ao lado diametralmente oposto, onde retomava a dire??o antes interrompida. Para se entrar na clareira só havia uma entrada, bem sob o local onde o sol nascia no equinócio da primavera.
O círculo de céu que se via estava de um azul forte; as nuvens brancas e floculadas cruzavam o círculo com extrema mansid?o.
Era um belo dia para um grande empreendimento. Finalmente ele havia chegado, furtivamente, quase sem ser percebido, tal como as coisas que podem mudar um mundo.
Ritual que ocorria antes de algum evento importante, onde eram sacrificados e devorados inúmeros prisioneiros;