Estranho como o mundo parece sempre estar atento a nós. Uma esperan?a quando o desespero cai, um facho de luz quando a escurid?o parece mais densa, um sorriso quando a dor parece nos sufocar...
I
Uivo sentiu aquela dor terrível novamente. Já longe do acampamento se deixou quieto, quase na copa de uma árvore, pensativo. A noite avan?ava, os grilos estrilavam pela floresta, e os animais da noite podiam ser ouvidos buscando alimento.
Devagar reviu cada palavra que Tenebe lhe contara sobre quem era, as coisas se encaixando, lhe indicando as possibilidades de ser.
- Trevas, Escurid?o ou Mercator – sussurrou para a noite de poucas estrelas.
Uivo se encolheu mais em sua dor. Sua mente caiu novamente em Allenda, e no ódio incompreensível que ela tinha por ele.
Muito lentamente, como se temendo a dor que acompanhava cada imagem e palavra de Allenda. às vezes parava e cismava sobre alguma palavra, em seu tom, e nos músculos que usara para proferi-las. Cada palavra segui assim, como se tivesse uma necessidade de, dentro daquela tortura, buscar algum gesto ou palavra de encorajamento.
Ent?o viu o momento em que se despedira, e os olhos indiferentes da flor-do-mato.
- N?o há nada ali – confidenciou para si mesmo. – Preciso tirar você da minha mente, destruir o que de você está em meu cora??o. N?o quero mais isso para mim – lamentou num sussurro pesaroso.
Ent?o foi despertado por um brilho ao longe, que se mostrava acompanhado por ganidos amea?adores.
Pensou em se afastar, permitindo que as escolhas se realizassem. Mas deixou os ombros caírem, sabendo que n?o faria isso. Ent?o de tronco em tronco avan?ou em silêncio, até ver abaixo algo que o desagradou profundamente.
No ch?o da floresta dois lobisomens haviam encurralado uma jovem flor-do-mato, que olhava para os lados, tentando achar alguma forma de escapar. Mas os lobisomens eram velozes, e lhe fechavam qualquer pequena possibilidade.
Ela estava incendiada, as luzes bruxuleando pelos troncos e folhas mais próximos.
Em total silêncio via o que eles estavam fazendo, porque eles mostravam claramente que aquela n?o era a primeira vez que atacavam um ser como aquele.
Eles sabiam o que faziam. Logo o fogo dela come?aria a enfraquecer.
Uivo saltou, caindo entre os dois lobisomens, logo à frente da flor-do-mato.
Ela deu um grito apavorado, acreditando que um outro ser vinha para disputá-la com os dois, como os dois lobisomens também acreditavam.
Mas ent?o a flor-do-mato procurou se proteger atrás dele, ao ver que ele nitidamente confrontava os dois lobisomens.
- Vocês s?o muito covardes. Corra menina, e n?o olhe para trás – orientou. – Corra como se o dem?nio estivesse em seus calcanhares.
Os lobisomens avan?aram. Mergulhando em sua dor por Allenda pouco se importou quando suas sombras explodiram.
Uivo ouviu o grito assustado e apavorado da menina ao ver suas sombras explodirem, como viu a confus?o nos olhos dos lobisomens.
- Fuja, menina. Salve a vida que tem – comandou, naquela voz que oferecia poucas esperan?as a quem a ouvia.
Com um prazer terrível viu a menina se afastar, e pensou com certo contentamento que ela n?o iria muito longe.
Saindo do estupor pela transforma??o de Uivo os dois lobisomens saltaram. Uivo, com um movimento simples, os colheu no ar, suas garras alongadas em sombras. Eles se revolviam e se batiam desesperados, e tentavam rasgar com suas unhas as sombras que os matavam.
Mas Uivo apenas os mantinha ali, à frente de seus olhos, como se os estudasse. Lentamente foi adiantando farpas contra os dois, suspensos em suas garras. Quando elas foram penetrando em seus corpos deixou o horror e o medo terrível que eles mostraram inundar a sua alma.
Assim que os deixou cair subiu no ar, procurando pela menina que fugira.
Sentiu como que um soco em sua mente, depressa se desfazendo dos pensamentos que lhe passavam. Com um sorriso no rosto sombrio se pegou desejando sorte para a menina que corria assustada dentro da noite para junto dos seus. Satisfeito com sua vitória sobre si mesmo se voltou para longe, para um acampamento danatuá.
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II
- Melhor, oncinha? – Jádina o cumprimentou assim que ele surgiu na curva da trilha.
- Sabia que eu vinha?
- Senti o cheiro de on?a molhada – riu. – E ent?o, como está? – perguntou amável, acompanhando-o para o interior do acampamento.
- Bem melhor do que no outro dia. Sei que ainda tenho um grande caminho para seguir, mas já estou dando meus primeiros passos.
- é mesmo? Você realmente parece mais feliz e confiante. Me conta, o que aconteceu.
- Você é estranha Jádina – riu. – Há alguns dias queria me matar, e agora me faz...
- Fa?o o que? Danbara, olhe quem chegou – falou interrompendo seu raciocínio, enquanto a irm? e alguns guerreiros vinham para o lado deles.
Uivo n?o pode deixar de sorrir. Apesar de ainda n?o se sentirem seguros com ele, eles o estavam tratando com respeito, até mesmo como parte de uma família. Sem querer sua mente comparou a recep??o que tivera na outra comitiva. Abanou a cabe?a, espantando esses pensamentos. Ali estava muito bom.
- Ent?o Uivo – Danbara cumprimentou, - como vai? Você parece diferente. Está mais... luminoso – sorriu.
- Ele já ia me contar por que está assim, n?o ia, Uivo?
Uivo se sentiu um pouco triste. Quando chegara achava que fora uma vitória n?o ter matado a pequena flor-do-mato, mas agora via que sua vitória podia n?o ser considerada assim.
- Descobri parte da minha estória. Compreender a si mesmo é parte da cura, n?o é?
- Ora, que maravilha – parabenizou Danbara. – E o que descobriu de você mesmo? – perguntou.
Uivo nem abrira a boca quando Danbara o interrompeu.
- Desculpa, Uivo, mas eu preciso mesmo ir. Conte tudo para Jádina, e depois ela me conta, se você já tiver ido. Está bem? Akindará, Uivo. Cuide bem dele, Jádina. O menino está evoluindo – riu, se afastando em companhia de mais alguns guerreiros que ela chamara para o seu lado.
- Vamos lá para a beira do regato. Lá você me conta o que descobriu. Mas antes me explica o que você quis dizer quando disse que fa?o outra coisa com você agora – riu. - O que é?
- Bem, me faz muito bem, Jádina. Quando alguém dá um voto de confian?a na gente, de forma totalmente descompromissada, aumenta a cren?a que temos em nós mesmos. Obrigado, de verdade.
Jádina riu feliz, tomando-o pelo bra?o.
- Você fala assim, mas e a Allenda? N?o é desconhecido que vocês têm algo um com o outro.
- Também achava, mas descobri que é ódio, vindo de uma mágoa, de uma raiva que n?o entendo.
Ent?o contou resumidamente o que acontecera quando fora ao encontro da comitiva, e a recep??o que tivera, principalmente de Allenda.
Jádina ouvia tudo atentamente. Ent?o, quando Uivo terminou de falar, se sentaram com os pés no regato.
- Você tem que entender Allenda, Uivo. Por muito e muito tempo, acho que mais de 100 anos, ela vagou sozinha, nunca se prendendo a alguém. Ela se julgava bem sendo e estando assim, e estava feliz em ser sozinha em seu cora??o. Ent?o você chegou e mostrou para ela que havia muito vazio ali. Ela precisa de tempo para se acomodar.
- N?o tenho todos os ver?es que ela, mas n?o puno os outros ao descobrir coisas em mim que apontam que andei enganado.
- Deixe isso passar, se n?o fica como quando você deixa a folha muito tempo na água, fazendo com que ela fique amarga demais. Agora me conta, que estou morta de curiosidade. Eu bem sei que n?o vai me contar o que descobriu de você. Respeito isso, porque é a sua estória, ainda mais considerando que o que tem n?o é a estória completa. Mas, você vai ter que me contar qual foi a vitória que você teve sobre si mesmo.
Uivo parou os olhos nela.
Jádina realmente era lindíssima, e a forma como ela conseguia ver as coisas a tornava ainda mais interessante.
- Eu achei que fosse uma vitória, mas agora n?o tenho tanta certeza. Foi muito pequena – falou sem-gra?a, chapinhando a água.
- Mas, mesmo assim, Uivo, você veio até aqui para nos contar. Agradecemos...
- N?o vim contar para vocês, Jádina; vim contar para você. A forma como me tratou em nosso último encontro me deu a medida da alma incrível que você é.
- Uivo, Uivo, sabe que eu tenho umas quedinhas por guerreiros grand?es, doid?es e meio endemoninhados, n?o sabe? – riu feliz.
- Ora, isso eu gostei de saber...
- é mesmo? – ela o olhou com mais aten??o.
- Sim...
- Uivo, n?o sou de rodeios. Sei que o destino seu é Allenda. Acho você muito interessante e, mesmo que n?o tenha demonstrado, quer dizer, ter demonstrado o contrário – riu um pouquinho, - confesso que tenho algum sentimento por você. Ent?o...
Uivo a pegou pela cintura e a puxou para si, beijando com carinho os seus lábios. Jádina tremeu um pouco, e ent?o enla?ou seu pesco?o, se entregando àquele beijo com que já vinha sonhando há alguns dias.
Quando Uivo a pegou nos bra?os e a deitou na relva macia na beira do regato, ela apenas sorriu e o puxou contra si.
Danbara abanou a cabe?a, vendo de longe os dois nus, brincando na água. Seu cora??o ficou macio e sua alma se encheu de ternura pelos dois. Como adorava ver sua irm? feliz. Ent?o avaliou como Jádina iria se sentir, quando o cora??o de Uivo reclamasse seu destino e se voltasse em definitivo para o de Allenda, pois era ali que ele morava. Danbara sorriu, sabendo muito bem que Jádina entendia muito bem isso, e que era adulta demais para se sentir feliz e grata por cada momento luminoso que a vida lhe desse.
- Que bom – suspirou se afastando, deixando ao longe as risadas gostosas que vinham do regato.
No mesmo dia à noite eles levantaram acampamento, e foram mais para o Noroeste, de onde vinham rumores de um contingente de sombras e mantas que, de posse de alguns dominados, avan?avam por lá.
Caminharam quase a noite toda, e foi no raiar do dia que os localizaram.
Eles estavam num vale abaixo, onde um extenso brejo se espraiava.
Por vários dias ficaram ali ca?ando.
Quando Uivo se batia com algum inimigo onde o dem?nio que era podia se mostrar, todos da comitiva se afastavam, até mesmo Jádina, mesmo sabendo que ele mostrava poder vê-la através de toda aquela escurid?o. Mas Jádina sabia bem dos riscos de uma perda de controle, para os dois.
Assim estava a vida de Uivo: quando o dem?nio se mostrava mais forte ele sumia, se perdendo nas florestas, só retornando quando estava mais tranquilo.
Jádina se ocultou, ocultando até mesmo sua presen?a de energia, vendo Uivo um pouco ao longe. Sabia que ele vinha se experimentando como dem?nio quando se afastava da comitiva, parecendo estar feliz com os avan?os que vinha experimentando em controlar um mínimo o dem?nio que era.
Orgulhosa ficou observando-o se poderar um mínimo em dem?nio, seu corpo sendo envolvido quase totalmente por uma neblina.
Ent?o o viu, desta vez se poderar um pouco mais, a fuma?a se tornando um pouco mais densa, enquanto crescia em tamanho.
Quase deu um urro de alegria quando ele, num impulso súbito, explodiu para cima, se perdendo muito além das nuvens.
Com um grande suspiro deixou o sorriso tomar seu rosto, enquanto voltava para o acampamento.
- Ah, tomara que dure mais um pouco – sussurrou um pedido para a terra e para as árvores.